Ele era apenas mais um estranho em terras estrangeiras. Dizia e demonstrava que adorava viajar.
Não havia sido criado para acreditar em superstições e coisas do tipo. Na verdade só veio a conhecer o termo “sobrenatural” na adolescência. E passou a ter um interesse superficial por isso. Mas voltemos a isso mais tarde.
Naquele inverno ele viajava pelas absurdamente frias terras da Europa Ocidental. A Velha Europa Ocidental. Com seus muitos vilarejos antigos, com costumes antigos e crenças ainda mais antigas.
Conseguiu uma ótima hospedagem, ainda mais se for incluso as histórias que ouviu do dono do albergue. Em sua totalidade, histórias sobre fantasmas e maldições.
Engraçado que, do momento que esse tema passou a permear seus pensamentos, ele parecia estar em todos os lugares.
E foi com uma dessas histórias em mente que ele desceu à parte abandonada do vilarejo.
Tudo começou com pesquisas na internet, é claro. Filtrando um pouco, ele conseguiu algumas informações um pouco mais “sérias” sobre ocultismo em geral.
Coisas simples como uma origem menos fantasiosa pra lenda dos lobisomens (que ainda incluía transformações, contudo), uma visão do paganismo sem a distorção do cristianismo, entre outras coisas.
E assim, com dados um pouco mais críveis, passou a buscar mais histórias assim. Sua motivação veio do fato que as fontes mais puras não tinham acesso à internet.
Ao se tornar um jovem adulto, passou a trabalhar pra possuir economias e viajar pelo mundo, em busca dessas histórias. Talvez para colocá-las na internet. Talvez não.
Com essa meta em mente, suas viagens sempre eram jornadas singulares, atravessando pontos não exatamente turísticos.
Vilas à margem de florestas mais velhas que as palavras que as nomeavam. Pequenas cidades cerceando lagos que perdem em profundidade apenas para seus próprios segredos.
E vilarejos isolados nas montanhas.
Tudo teria acontecido em uma pequena casa, antes apenas longe do vilarejo. Agora isolada tanto pela natureza quanto pelas intenções dos moradores.
O pequeno caminho que levava até ela estava coberta pela vegetação da montanha. Mas ainda era discernível.
Olhando para a casa, parecia não estar abandonada há tanto tempo.
Montando sua imagem sem o musgo pelas paredes, a árvore que parecia ter decidido que parte da parede e telhado estavam no melhor caminho para seus galhos e os telhados que haviam caído, a casa parecia bonita.
Pequena e rústica, mas bonita. Não deveria possuir mais de vinte metros quadrados, com grandes janelas, possíveis apenas para casas de tempos antigos em lugares remotos. A entrada da casa, que ele encarava no momento, recebia todo o sol nascente.
O viajante era corajoso, mas não havia motivo pra visitar um lugar com uma fama tão ruim à noite.
Aproximando-se da entrada, a absurda sensação de estar sendo observado fez sua nuca coçar.
“Um clássico de filmes de terror”, pensou.
Se apoiou no batente de madeira escura, sem porta alguma, e olhou para dentro. Parecia ser a cozinha da casa, que não chegava a ocupar nem metade da mesma. Era bem pequena, com um fogão à lenha no lado direito, uma mesa aparentemente muito pesada encostada na parede, ao lado do fogão.
Estranhou o fato de não ter uma pia, mas não se preocupou muito com isso. Estava mais preocupado com o que estava vendo no fundo da cozinha.
Obviamente, esse interesse pelo oculto não era compartilhado por nenhum de seus amigos, colegas, conhecidos, familiares ou clientes.
Não que ele tenha entrado nesse assunto com algum cliente.
Mas nenhum deles teria se interessado por um assunto maluco desses. Ele mesmo achava muito estranho todo esse interesse, mas ele continuava pesquisando e viajando.
Já tinha aceitado que, por ora, era uma jornada solitária.
Como ele buscava sempre referências, ditas “reais” sobre o oculto, passou a gostar também de assistir os filmes de terror, apenas para comparar as bizarrices destes com o que conhecia. Se admirava com a criatividade dos diretores de nunca largar um tema, por mais batido que pudesse ser.
E com esse hábito, passou a perceber alguns padrões. Como a garota sozinha no escuro pedindo para o engraçadinho do grupo parar de brincadeira (normalmente seguido de um decapitação), ou alguém que sofreu alguma coisa na mão de uma aparição e é acusado de autoflagelação (comumente seguido da morte do acusador).
E, claro, o já clássico corredor escuro.
Com um vulto no final.
Ali, naquele momento, ele sentiu o que só havia lido até então. A incapacidade de correr.
Só conseguia olhar para o vulto e ter a certeza que o vulto também olhava pra ele.
Queria correr. Queria perguntar quem era. Queria lembrar do que havia ouvido na noite anterior.
O dono do albergue lhe contou que há muitos muitos anos, antes mesmo do bisavô de sua avó ter nascido, naquela casa havia morado o responsável pela caça do vilarejo, na época com bem menos moradores.
Ele possuía uma filha. Apenas a filha. Sua esposa havia morrido pela peste, ainda um resquício do passado de sua terra natal.
Quando o caçador saía para cumprir suas obrigações, sua filha ficava em casa, cuidando para que a caça anterior estivesse pronta quando o dono do armazém viesse buscar. Cuidava também para que houvesse água fervendo para recomeçar o processo com o que seu pai trouxesse.
A casa era afastada do resto do vilarejo oficialmente apenas por causa do cheiro dos animais mortos; não-oficialmente ninguém gostava do caçador.
Um dia, voltando com dois coelhos no ombro, ele estranhou a ausência do já esperado barulho da água fervendo. Conseguia escutar a lenha crepitando no fogão, mas nada da água. Também não ouvia sua filha trabalhando na casa.
Pensou, com tristeza, que sua filha adolescente, já estava se interessando mais por outros adolescentes do que por seu ofício. Não conseguia se irritar, mas achava que ela, pelo menos, poderia ter terminado o que fazia.
Ainda pensava na infância dela quando entrou na casa e a viu no chão.
Em sua loucura, conseguia entender que ela tivesse sido estuprada e morta. Não conseguia absorver, contudo, que mente diabólica poderia ter tido o impulso de queimá-la com a água fervente.
Estava em um estado tal, que não conseguiu perder o controle. Sua mente gritava e se despedaçava, mas seu corpo se virou pra fora. Sua sanidade havia partido para o abismo, mas seus olhos procuravam. Seu cérebro reverteu a um estado primitivo, e seus instintos encontraram.
Quem quer que tenha estado ali, não vinha do vilarejo. Os monstros tinham vindo e voltado pela estrada que subia até lá.
Agora ele olhava com mais calma. Não exatamente mais calmo, mas havia respirado um pouco.
Olhando bem, não havia vulto algum. Tanto sua vista tinha acostumado um pouco mais com o interior da casa quanto o sol tinha ficado mais forte.
Olhou as horas no seu relógio. Ainda eram sete e vinte e sete. Ele tinha tempo de sobra para entrar e sair com luz.
Passou pela cozinha, onde supostamente o caçador tinha encontrado sua filha, torturada e violada. Esperava ver uma sombra impressa no chão, mas nada havia.
O corredor era curto e apertado. Ele ficava bem à esquerda da casa. No meio do caminho entre a cozinha e o resto da casa, existia um batente sem porta, que levava a um depósito de ferramentas, hoje vazio.
Estranhou também que na casa não havia banheiro, antes de se lembrar que ela era muito antiga.
Ainda pensava nisso quando sentiu não só que estava sendo observado, mas observado muito de perto.
Virou rápido pra trás, já sentindo o grito preso na garganta.
Não havia nada.
Lembrou novamente dos clichês dos filmes que assistiu, onde agora viraria de novo pra frente e se veria a dois centímetros de alguma aparição realmente medonha.
Ele sabia que era ridículo estar assustado com isso, mas por um momento não conseguiu virar de volta.
Respirou fundo e então se virou para o final do corredor, onde havia visto o vulto.
Continuava vazio.
Suspirando de alívio, continuou caminhando até lá. Pelo que esperava, haveria uma divisão entre uma sala e quartos.
Mas constatou que só havia um quarto. E, estranhou, no resto da casa sempre havia algum sinal de deterioração pela floresta.
Mas não ali. Até mesmo a janela continuava fechada, completamente inteira. E não haviam nem restos das possíveis camas que ali teriam existido.
Caminhou até a janela, pensando em abri-la, sem reparar onde pisava.
No meio da sala, ele começou a involuntariamente lembrar mais um pouco da história da casa, mas também parecia estar assistindo ela acontecer.
O caçador achou que não conseguiria encontrar os assassinos de sua filha. Na verdade, teve medo de não encontrá-los.
Então decidiu procurar outra forma de se vingar.
Algum tempo depois, os moradores do vilarejo começaram a perceber as pessoas desaparecidas. Queriam perguntar para o único que talvez conseguisse encontrá-las na floresta, mas ele havia perdido a filha ainda há pouco tempo.
E, claro, ninguém gostava dele.
Mais tempo passou e mais pessoas desapareceram. Resolveram procurar o caçador, então.
Aproximaram-se da casa, sentindo ainda os resquícios dos odores animais, mas não tão forte quanto normalmente eram. A casa estava escura, mesmo que ainda fosse o meio da tarde.
Chamaram à porta. Como não receberam resposta, entraram. Passaram pela cozinha, com seu chão limpo. Perceberam que o fogão não era usado já há algum tempo.
Seguiram pelo corredor. Viram as afiadas ferramentas do caçador. Tesouras nas paredes do pequeno depósito. Facas de diversos tamanhos penduradas.
Chegaram ao fim do corredor e então viram.
Formando um círculo no centro do quarto, cada um dos moradores reconheceu um ente querido. Mas eles estavam estranhos, como que sem uma mente para domar seus atos. Estavam apenas lá, sentados em círculo, virados para o centro.
E o mais estranho eram suas aparências. Suas peles pareciam ser madeira que havia pegado fogo e recentemente molhadas. Enegrecidas, não naturais, mas ainda de alguma forma orgânicas.
A escuridão imperava na sala, portanto foi difícil, em um primeiro momento, ver o que estava no centro do círculo. Lá estavam três homens, em pé, aparentemente normais, de costas um para o outro, muito assustados.
Quando um deles se aproximou da borda do círculo humano, finalmente os queimados esboçaram reação.
Todos eles se aproximaram dos homens, apertando o círculo. Ajoelhados, seguraram as pernas dos homens.
Oculto pela escuridão, ninguém o viu, até que do fundo do quarto, veio andando o caçador, de cabeça baixa. Chegou perto do círculo e segurou o lado da cabeça de um dos homens.
“Pudera eu ter o poder de fazer vocês sofrerem tanto quanto meu coração anseia”, ele disse. “Mas não caberá a mim essa função.”
Só então os moradores perceberam que os olhos do caçador estavam brilhando com um amarelo doentio.
Confuso se havia sido uma alucinação ou apenas uma lembrança muito vívida, o viajante sacudiu a cabeça.
Olhando ao redor, viu sombras nas paredes, como se houvessem pessoas reunidas em torno de uma fogueira no centro da sala.
Já tinha desistido de abrir a janela e estava se virando pra voltar quando sentiu novamente olhos sobre si.
Mas dessa vez estava muito mais forte. Ele conseguia sentir os observadores logo nas suas costas. Essa sensação crescia sobre seus ombros, como alguém com as mãos quase o tocando.
Quando deu um passo à frente, a sensação de quase toque sumiu. Mas voltou logo em seguida, já que ele não havia andado mais.
E dessa vez, as mãos pareciam crescer mais e mais sobre ele, como que se fechando em volta de seu pescoço. Completamente assustado, ele andou mais e andou mais rápido, na direção da saída da casa.
No corredor, pelo canto dos olhos, captou o brilho de metais no depósito, mas continuou correndo.
Passando correndo pela cozinha, pensou ter visto um corpo ensanguentado e fumegante no canto, mas ainda assim continuou correndo.
O caçador havia feito um pacto, disse o dono do albergue. Sua alma pelo sofrimento eterno dos assassinos. Mas uma alma era pouco pelo que ele pedia, havia dito a entidade. Ele precisaria de mais almas.
E, cego pelo desejo da vingança, ele buscou no vilarejo por sacrifícios. Inocentes encontraram a morte nos rituais que realizou dentro de sua casa. A entidade havia conseguido enganar completamente o caçador.
Ela chegou a ludibriar os assassinos a voltar à casa, mas era um preço pequeno pelas almas que havia conseguido. E essas almas agora estariam para sempre presas nestas formas, sempre buscando nos arredores por mais almas, procurando quitar sua dívida não existente com a entidade.
Elas também foram iludidas pela entidade, conseguindo cada vez mais almas e mais poder para si.
Guardavam um pouco de suas consciências, porém, pois nunca condenavam almas dos moradores de seu vilarejo.
O viajante correu, na esperança de conseguir chegar à luz do sol. O dono do albergue havia lhe dito, também, que os condenados evitavam ser tocados por qualquer fonte de luz.
Dessa forma ele ficou aliviado quando chegou ao lado de fora. Tão aliviado que, em um primeiro momento, não reparou.
Não percebeu que era noite.
Quando finalmente viu que era noite, correu. Correu muito.
Mas o dono do albergue vendeu as coisas dele pro próximo viajante que esteve lá.
Menos o relógio que ele costumava usar.
O relógio quem comprou fui eu.
Porque eu também sou um estranho. Strange, na verdade. Tom Strange. E eu sigo pelo mundo ainda mais obsessivamente que o viajante dessa história.
Com a diferença que eu busco resolver pendências como essas.
Com um pouco de sagacidade e pensamento rápido, consegui deixar aquele vilarejo em paz para novos viajantes, curiosos com sua história.
E eu trago este relógio para ter certeza de que não foi um sonho. Uma pena que eu não consigo desligar seu alarme.
Que sempre toca às sete e vinte e sete da noite.